Aos terceiros anos.
O
que acontece quando um trabalhador desqualificado fica muitos meses, ou até
anos, sem conseguir emprego? Ou quando só consegue vez ou outra, um “bico”
esporádico, mas em uma frequência que não é suficiente para atender a suas
necessidades básicas, digamos, de alimentação? Ou de alimentação da sua
família? Como nos diz José, um catador de lixo: “A gente fica dois, três dias
sem comer”... “Mas com filho né, tem que ter comida todo dia.” José trabalhava
em uma fábrica de calçados. Mas a fábrica foi à falência. Os anos passam...
José, apesar de muito dedicado ao trabalho, não consegue mais do que alguns
bicos... José, então engole a sua vergonha e enfrenta a opção que lhe resta:
catar lixo reciclável.
Geraldo
é um típico “cachaceiro”. Por muito tempo viveu de pequenos bicos. Isso quando aparecia.
Não se dava ao trabalho de procurar. É expulso de casa. Este não tem parente
que o possa acolher ou suportar. Vai ficando pela rua...Sem dinheiro, começa a
pedir 50,30, 10 centavos a quem lhe cruza o caminho. Quando consegue, não vai
comer. Toma uma cachaça. Mas alguma hora ele tem que comer. Descobre, por
acaso, um pequeno depósito, no bairro em que vagava que compra lixo reciclável.
José
é um trabalhador honesto e esforçado. Tem 48 anos é casado, tem dois filhos. Mora
em uma área de invasão. Acorda todo dia às 4:30 horas. Não toma café. Segue direto
seu percurso de mais de uma hora de caminhada até seu ponto de trabalho, um
elegante bairro de classe média. Costuma passar as manhãs remexendo no lixo, e
as tardes separando os diferentes tipos de lixo reciclável. No fim do dia, sai
com seu carrinho, tão cheio que chega a medir o dobro de sua altura e enfrenta
o tumultuado trânsito da cidade.
Geraldo
é morador de rua. Tem 43 anos, mas aparenta ter 70. Por certo tempo,
estabeleceu endereço fixo: o espaço entre a calçada e os portões de uma loja em
construção... Lá, pôde ir juntando o pouco lixo que recolhia... de início era
discreto, ganhava comida e algum material reaproveitável da vizinhança. segundo
dizia, tinha que tomar conta do material que estava guardado na loja, o que
justificava que ele preferisse ficar ali, onde “todo mundo era muito legal” com
ele,
A
“invisibilidade” é inerente à condição de catador, seja este regular (como José)
ou irregular (como Geraldo), seja durante o trabalho, ou mesmo durante o
repouso, quando o catador é morador de rua. A questão é que chamar a atenção,
ao menos no caso dos catadores, quase sempre é algo negativo, fonte de
humilhação, pois como não estranhar um “farrapo humano” remexendo no lixo, em
um local que ele nunca frequentaria a não ser para isso (ou para pedir esmola),
sujando a paisagem de quem de outra forma não tem que conviver diariamente com
a miséria, com sua feiura, se não fosse esse mecanismo peculiar da
“invisibilidade moral”? Essa invisibilidade, como já apontado, não é um não
perceber. Como diria o pensador alemão Axel Honneth, ela é mais um “olhar
através” (look through); é perceber fisicamente a presença do outro, e,
mesmo sem se dar conta, ignorá-la por completo; é decretar a não relevância
social do outro.
Por
conta desse mecanismo, o desqualificado, indigno de atenção, só se torna
visível se fizer algo que chame a atenção, como um cachorro de rua, que só
percebemos que está lá quando rosna ou late para nós, ou quando mexe no lixo e
deixa tudo esparramado.
Mas
por que, insistimos, um trabalho honesto pode ocasionar vergonha e humilhação a
quem o pratica? Entre outras coisas, por ser um trabalho que qualquer um pode
fazer, o que aqui é mais extremo, pois até um “cachaceiro bêbado” pode
praticá-lo. Mas isso não interessa a todos nós, que compartilhamos
inconscientemente os critérios morais da exclusão, que nos levam,
“naturalmente”, ainda mais no caso extremo e ambíguo dos catadores, a projetar sobre
todos o estigma, que vai aqui além do desrespeito e descaso comum de que são
alvo os membros da ralé.
Assim, a situação dos
catadores é particularmente ambígua(equivocada), já que sua forma de trabalho
não garante que sejam vistos como não delinquentes, visto que delinquentes —
vagabundos, bêbados da ralé, que perturbam a paz pública — podem exercer essa
atividade Daí a ambiguidade dos catadores. Afinal, como distinguir entre o
bêbado que junta um pouco de lixo para comprar mais cachaça e o trabalhador
regrado, que dá duro todo dia para sustentar a sua família, quando alguém está mexendo
no lixo?
Diante
da especificidade das histórias de vida analisadas aqui, não faz sentido o teor
genérico da ideia de que todo trabalho é digno. Mesmo com toda a peculiaridade
desses trabalhadores desqualificados, enquanto indignos e invisíveis. O exemplo
dos perfis classificatórios: “empregados com carteira”, não podemos saber quem
é ralé e quem não é, ou seja, não podemos distinguir trabalhadores qualificados
de desqualificados. Para que fique mais claro, alguém pode trabalhar com
carteira assinada numa grande empresa, com vários direitos assegurados,
enquanto outros podem trabalhar em uma pequena loja, com carteira, mas receber
apenas a comissão pelas vendas, que muitas vezes não alcança nem um salário mínimo,
e assinar seu recibo de salário obrigatoriamente. Quanto a “empregados sem
carteira”, também podemos encontrar trabalhadores qualificados, como
representantes de venda, que não são da ralé, bem como desqualificados, que certamente
são a maioria nesse caso. Por fim, o que nos parece mais confuso é o famoso
“conta própria”, ou autônomo.
Os
níveis de sofrimento e invisibilidade são distintos entre os desqualificados. Isso
é preciso deixar claro que há hierarquia entre as ocupações e porque algumas
são mais dignas do que outras.
Pior
ainda é a situação dos catadores, na escala moral da dignidade que define
vencedores e fracassados. Podemos concluir que eles se encontram exatamente na
linha divisória entre a (in)dignidade e a delinquência, uma vez que sua
condição é ambígua diante dos olhos de toda a sociedade meritocracia, pois sua
ocupação também é praticada por delinquentes. No entanto, todos os
desqualificados compartilham da mesma sina: conformar-se à trajetória do que
não ser, na medida em que esse é o horizonte mais provável que sua condição de
classe proporciona.
Texto
adaptado do Livro A Ralé Brasileira – Jessé Souza.